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Entre doçuras e amarguras (simples lições de empreendedorismo e fé)

Publicado em 27/02/2023

“Quem brilha muito atrai quem é da escuridão.” Seria uma reflexão mística na rede profissional? Não exatamente.

Certo dia, de férias em uma praia bonita, dessas muitas que temos por aqui, fui surpreendida por uma empreendedora com abordagem diferenciada (dentre um milhão de abordagens apelativas e grudentas, cujo negócio, por vezes, apenas se efetivava para dar cabo à perturbação – sim, a gente ainda vê esse tipo de “técnica de persuasão”, de vencer o cliente pelo cansaço, mundo afora).

No meio de tantas bebidas refrescantes e petiscos apetitosos, Gal se destacava ofertando o “doce chic da Gal”. Tudo muito bem embalado, limpinho, com matérias-primas de qualidade, coisa e tal. Mas foi o sorriso da Gal que me botou curiosa e, logo eu, tímida e introspectiva, resolvi puxar assunto.

Perguntei o motivo para o doce ser “chique”, como ela anunciava. Sua primeira resposta, autêntica e verdadeira, fez menção à necessária crença em seu produto. “Se eu não achar o melhor do mundo, quem é que vai achar isso?”, ela me respondeu, fazendo questão de que eu degustasse uma amostra, sem compromisso. Cá entre nós, baita lição sobre como superar a síndrome da impostora, né?

Realmente delicioso – especialmente para uma inveterada formiga que sou. Prolongando a boa conversa, perguntei de onde teria vindo a receita tão chiquetosa do tal doce. Aí sim, uma saborosa história de vida (ainda que não tão doce). Como fazer inovação a baixíssimo custo - lição número dois.

Gal já ganhou muito dinheiro no passado. Casou-se com um estrangeiro e foi morar na Itália. Lá educou seus filhos e desfrutou do bom da vida. Um belo dia, como em toda história que se preze, veio a crise, as dificuldades e as provações. Separada, sem condições para subsistir em um país distante, Gal amparou-se em sua crença e pediu uma solução para a situação em que estava. Interessante, inclusive, a entonação do pedido, conforme o relato. Não com coitadice, mas com a convicção de quem não seria deixado à revelia do destino. Pediu uma luz para colocar a vida em bom caminho novamente. E adormeceu.

Acordou no dia seguinte sabendo a receita do doce. Com os trocados que lhe restavam, comprou os ingredientes e preparou a gostosura, ofertando à vizinhança para checar a aderência da provável clientela. Mas outra instrução lhe foi dada, sempre por meio de sua fé. Deveria retornar ao seu país, pois aqui é que estava guardada a prosperidade que lhe cabia.

Milagrosamente conseguiu um jeito de voltar ao Brasil com os filhos, carregando na bagagem sua preciosa receita. E, em sua cidade de origem, a até então princesa retorna como gata borralheira. Com humildade e determinação, Gal encara, diariamente, o sol escaldante e as areias fofas, com seu cooler recheado de delícias. E assim, já há alguns anos, Gal toca a vida, com plena dignidade e toda perseverança expressa pelo brilho nos olhos presente à medida que conta, cheia de gratidão, a sua história. Resiliência? Pois então, temos aqui também!

Mas, apesar do céu azul, nada de viver feliz para sempre, pelo menos por enquanto. Isso porque o sucesso de Gal incomodou alguns comerciantes da região, que a proibiram de abordar a clientela – mesmo estando à beira mar. O que resultou na necessidade de mais caminhada, mais suor e mais sacrifício para encontrar potenciais consumidores e garantir seu ganha-pão. Como se não bastassem as ameaças verbais, há quem tenha, inclusive, estabelecido o litígio formal, com falsas e pesadas acusações contra a empreendedora – envolvendo inclusive sua índole e caráter. Parece que as pedras no caminho são parte integrante deste tipo de narrativa - será que precisariam ser assim tão duras, penso eu...

Contudo Gal conta, até mesmo esse trecho da história, com semblante sereno. Disse ter conseguido um advogado abençoado, que fez uma defesa impecável, e está a espera do andamento do processo, com esperança de que contenda se encerre até o final do ano.

Saboreio mais a história do que o doce, refletindo como o dulçor não se mistura com tantas amarguras vividas. Acho que Gal nota meu semblante de desolação. E conclui: “não tem nada não. Vai dar tudo certo. Quem tem um propósito e ajuda numa obra maior, irradia luz demais. Aí, quem é da escuridão se incomoda. Ir em frente é nossa obrigação.”

Não sei se o recado foi pra mim, não sei de onde veio a nossa identificação. Sei que o doce chic da Gal expressa apenas uma pequena parte da doçura de alguém que, acima de tudo, parece “possuir a estranha mania de ter fé na vida”. Em frente, Gals e Marias que somos. Sem perder a doçura, jamais.

 

Por Maíra Santiago, diretora-presidente da Cooperativa Coletiva