"Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas.”
Com esse trechinho de Rubem Alves, gostaria de iniciar a minha reflexão. Quando falamos em educação no contexto cooperativista, temos a grande alegria (e responsabilidade) de encarar esse desafio não como uma opção, como uma alternativa. Ao fazer parte de nossos princípios doutrinários, a observância da realização, da efetivação da educação, é uma característica atribuída a nossas cooperativas. Não há cooperativa que não eduque – ao menos não deveria haver.
Pensar em gaiolas ou asas nos leva à reflexão acerca do tipo de educação que realizamos. E aqui, não nos limitemos a pensar apenas nas louváveis iniciativas voltadas ao público escolar. Penso que a grande questão posta é a reflexão sobre o tipo de educação promovida no seio de nossas cooperativas. Uso a primeira pessoa do plural nesse caso com muita honra, uma vez que faço parte do movimento do lado de dentro. Como diretora-presidente da Cooperativa Coletiva, especializada em intervenções de educação corporativa, pensamos todos os dias nos desafios da educação.
A educação que engaiola, não promove a arte do voo. Com práticas de educação bancária – termo pontuado por Paulo Freire, há quem foque puramente na transmissão de conteúdo. E assim, perpetua a vivência engaiolada, que apenas reproduz discursos e pensamentos. Por exemplo: raro encontrar algum cooperativista que não saiba, na ponta da língua, cada um dos sete princípios. Mas, o quanto provocamos reflexões para a vivência intensa dos mesmos? Afinal, nas palavras de nosso patrono do cooperativismo nacional, padre Theodor Amstad, “a reflexão deve vir acompanhada da ação”.
Escolas que são asas, no sentido da promoção da educação corporativa-cooperativa, são ambientes de trabalho que se fundem aos ambientes de aprendizado. O que é o sentido do aprendizado contínuo, o lifelong learning da Unesco, se não o aproveitamento da vida como campo de educação?
Infelizmente nosso mercado ainda canaliza a educação para que os jovens entrantes considerem apenas duas alternativas para o futuro. Um bom cargo em uma grande corporação ou o empreendedorismo solitário. A opção da gaiola ou do voo solo. Cada qual com seus riscos e desafios, certamente. O nível de desemprego em nosso país, é problemática mais do que conhecida. Hoje, somam-se mais de 14 milhões de desempregados em nossas terras. Já afamada pesquisa do Sebrae sobre a o índice de mortalidade de pequenas empresas, já nem nos assombra mais. A edição de 2020 conclui que a mortalidade nos primeiros cinco anos entre os microempreendedores individuais (MEIs), é de 29%. Entre microempresas, em altos 22%, as empresas de pequeno porte – com possibilidade de faturamento mais largo – 17%. Voo solo rodeado de predadores.
Não é vislumbrada a possibilidade de voar livre e coletivamente. As cooperativas nem são uma hipótese aventada, tamanho desconhecimento sobre o tema. Entre optar em ser rabo de tubarão ou cabeça de sardinha, há o imenso potencial, ainda tão inexplorado, de compor a inteligência da revoada. Para tanto, há de se educar de um jeito novo.
Já acompanhei processos de boas-vindas a novos colaboradores em que o discurso de promoção ao protagonismo em nada combina com a falta de espaço para o diálogo e a construção conjunta. Depois de uma semana sentados, escutando sobre a história da cooperativa, os fundamentos do cooperativismo, sobre os probos pioneiros de Rochdale, vem a vida real. A atuação em uma agência, ou posto de atendimento, ou escritório, com a demanda de ser protagonista, ser ativo, ter visão de dono. O discurso, embora inspirador, não tem a força do exemplo e da vivência. É preciso mobilizar as pessoas à ação, à busca, estimular a curiosidade em prol da cooperação. Difícil aprender a voar se mantendo preso dentro da gaiola.
Um termo que passou a ser comum no universo da educação é a heutagogia. Do grego “heutos”, que significa auto, próprio; e “agogus”, que quer dizer guiar. Mesmo sem conhecer o termo, nos vemos heutagogos no dia a dia. Um exemplo muito simples é nosso comportamento em redes sociais – somos capazes de assimilar conhecimentos e, ao mesmo tempo, naturalmente nos portamos como produtores de conteúdo. Sua base são 3 aspectos: autodidatismo, autodisciplina e auto-organização. É a vivência do tal protagonismo, na prática e de maneira natural. Assim, é flagrante que educador e educando se aproximam, se misturam, constroem o aprendizado conjuntamente. A democratização da educação. Opa, gestão democrática é nosso segundo princípio! Que incrível vive-lo muito além dos processos assembleares, na vivência diária, que inclui os momentos de educação corporativa.
Carl Rogers, precursor da psicologia humanista e criador da abordagem centrada na pessoa (nascido nos EUA em 1902 – junto com a nossa primeira cooperativa do Brasil). Abordagem centrada na pessoa. Hoje se anuncia a experiência centrada no usuário como grande novidade, porém olhando alguns referenciais, vemos que muitas “novidades” estão no mundo há tempos – aliás, o próprio cooperativismo é assim! Um modelo de negócio disruptivo, inovador e vanguardista, que muitos ainda desconhecem. Então, a educação precisa ser focada na pessoa. Por vezes, a gente se apaixona tanto pelo conteúdo que esquece que tem alguém do outro lado, que só vai fazer uso se se sentir realmente “sedento” e motivado. E aqui a gente fala do despertar da motivação intrínseca – e não a extrínseca. Buscar aprender por compreender o ganho para si mesmo e para o entorno. Autoajuda e solidariedade, juntos. Olha aí nossos valores cooperativos, sendo convidados à pratica, também nas intervenções de educação. Convergir discurso e prática, para Rogers, tem o nome de “convergência”. Faça o que eu digo, mas também faça o que eu faço.
Será que nossos colaboradores, no caso de uma cooperativa de crédito, concentram suas operações financeiras em sua própria cooperativa? Difícil convencer o associado para que traga seus investimentos, seguros e afins, se o próprio gerente de conta não o faz. A gente também precisa olhar para isso quando realiza educação. Essas provocações, certamente, são de alto nível de desenvolvimento.
Há quem não goste da palavra “provocação”. Penso que a educação corporativa deva ser, essencialmente, provocativa. Provocar ações. E ser pró vocação. Convidar à vivência das potencialidades, pra valer, no trabalho. Assim, as pessoas se autorrealizam e, de quebra, constroem melhores resultados – econômicos e sociais. Compreendendo que a sociedade que desejamos impactar é um meio do qual cada um de nós também faz parte. Para promover desenvolvimento, é preciso também perceber o próprio – social e econômico.
No advento da educação digital, fica ainda mais difícil manter a atenção, o interesse, a relevância diante dos grupos. A distração está a um clique! Portanto, apenas no discurso, fica cada vez mais difícil manter a conexão, a atenção. Penso que estamos aqui conversando entre líderes. E todo líder é educador. Para manter instigados nossos colaboradores ou cooperados educandos, é preciso estimular a sede. Explico.
Já tentou beber água sem ter sede? Médicos e nutricionistas, em geral, recomendam o consumo de no mínimo 2 litros de água ao dia. Beber água sem sede não é nada aprazível. Gera até mal-estar ingerir grandes quantidades de água se nosso organismo não estiver sedento. Com a aprendizagem também é assim. Horas a fio de informações, matérias, conceitos e técnicas, serão indigestos se, antes, não estimularmos a sede. A excelente notícia é que, atualmente, há inúmeras fontes de qualidade para matar a sede. Porém, é preciso estimulá-la.
Rubem Alves continua: “Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo.”
O estrondo gerado pela série Rond 6 traz reflexões sobre voos e donos. Desprovidos de dinheiro, as pessoas deixam de ser donas de si. Num cenário grotesco, o dinheiro vale a vida, remontando aos tempos dos gladiadores.
Para que pássaros voem, ou para que colaboradores ou cooperados tenham autonomia e protagonismo, há uma premissa, pontuada por Rogers, que deve ser observada. Abriremos as portas da gaiola, invariavelmente, se acreditarmos na potência das asas. Essa crença Rogers chama “consideração positiva”. A gente não educa ninguém que a gente não acredite. É preciso confiar no potencial, nos talentos, das pessoas que nos empenhamos em formar. Sem isso, é até mais justo que não desperdicemos tempo tentando. Nem o nosso precioso tempo, nem o tempo de quem ficará entediado e, muito provavelmente, se sinta preterido no processo.
E a nossa consideração positiva aumenta à medida que como educadores nós vivenciamos a compreensão empática. Empatia deve ser um dos termos mais “gastos” no mundo corporativo atualmente. Gosto de pensar na empatia a partir da definição de Marshall Rosemberg, pai da Comunicação Não Violenta: a capacidade de acolher, com respeito, a realidade do outro. Nada de “calçar a sandália do outro”. Isso me parece tão inalcançável. Acolher com respeito é factível. Buscar compreender as premissas, as dificuldades. O primeiro passo essencial neste caminho? Exercitar radicalmente a escuta. Parar de tentar adivinhar o fim da história, o problema do outro, parar de estigmatizar e de se permitir guiar sem freios pelos vieses inconscientes.
A gente quer, numa cooperativa de crédito, que aconteça o atendimento consultivo, mas como é a vida lá na ponta? Com tantos canais de acesso do cooperado à cooperativa, será que é possível manter a proximidade, a simpatia e a agilidade? Só buscando se entremear nessa realidade para saber – e não discursando fórmulas prontas. Nesse mundo de mudanças instantâneas, não há fórmula pronta que resista. E mais: ninguém dá o que não tem. Se desejamos uma equipe empática, é preciso que se sintam compreendido empaticamente. É assim que encorajamos o voo.
Desanimador? Muita coisa pra fazer? Muito pelo contrário! Nossa vantagem ao sermos cooperativistas é que já estamos em um contexto mais do que adequado para a promoção destes três aspectos pontuados: congruência (falar o que faz e fazer o que diz), consideração positiva (crença nas asas) e compreensão empática (o que desperta a sede).
Que saibamos usar favoravelmente as inovações e tendências de mercado, mas sem nos perder de nossas raízes, tão preciosas. Em tempos de sustentabilidade, esg, nova economia, capitalismo consciente - o cooperativismo, se usar a educação como ponte para a vivência dos fundamentos da doutrina, tem muita inteligência coletiva para colocar a serviço da evolução da humanidade.
Sem nunca esquecer, como conclui o mestre Rubem Alves, que “O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado." Voemos juntos!
Texto produzido por Maíra Santiago