No último dia 20 de junho, tive a alegria de realizar um bate-papo, veiculado ao vivo no Instagram, com o cooperativista Geraldo Trindade – autor do livro Xá Ku Nóis. Dentre as várias temáticas instigantes, uma frase provocativa dita por ele me chamou a atenção: “cooperativismo é coisa de pobre”. Papo direto e reto, para que possamos botar o dedo em algumas feridas de nosso movimento.
Ainda há quem pense que cooperativas são instrumentos de inclusão social (o que é verdadeiro). Há quem imagine que as cooperativas servem a intenções voltadas à sustentabilidade (parabéns, acertou em cheio!). Outros, que fantasiam que cooperativistas são seres de luz, movidos por um propósito grandioso, desejosos em transformar o mundo (parabéns, gabaritou o teste!). Como agentes protagonistas da chamada economia solidária, o cooperativismo é tudo isso e muito mais. Porém, isso nada tem a ver com pobreza – apenas retrata a pobreza de espírito de quem enxerga com tamanho viés.
A mentalidade de que “farinha pouco, meu pirão primeiro”, como apregoa o dito popular, justifica o flagrante desta visão. A afamada solidariedade na desgraça, tão noticiada em tempos de carestia, talvez gere essa confusão – de que não poderia haver solidariedade na bonança. Sim, o nosso modelo de negócio tem sua origem em tempos de crise. A capacidade de compreender problemas comuns, e buscar soluções igualmente comuns, é o cerne de toda cooperativa. A gente não se junta unicamente porque é legal, bacana, divertido ou inspirador (até porque dá um trabalho danado constituir uma cooperativa – mas isso é tema pra outra conversa).
Falta ainda ponderar que a farinha não precisa ser pouca. E que o pirão pode ser servido a todos, de maneira justa e equânime. Diante do “muito”, da abundância, da oportunidade, a consciência de vários de nós, ainda forjada naquela educação bancária em que o sonho do oprimido é se tornar o opressor – como ensina o mestre Paulo Freire, segue orientada para a acumulação, para a desigualdade, para a exploração, para o uso das pessoas em benefício do capital. Triste realidade!
Tanta gente discursando boas intenções e brigando por reservas de mercado, acordos de não concorrência, pactos leoninos de restrição de liberdade do trabalhador, precarização das relações de trabalho, pseudo empreendedorismo que só beneficia uma das partes da relação – via de regra, a que tenha mais posses. Mentalidades, essas sim, miseráveis.
Mesmo no cooperativismo – ou sobretudo nele, o desafio é constante. Vigiar para manter a essência da cooperação, construir processos democráticos de verdade, ouvir demandas dos sócios, honrar os preceitos, não morder a isca do que é o mercado tradicional, zelar pelo bem comum, entender que o ganho individual deve impactar positivamente o ganho coletivo, refletir sobre o melhor uso dos recursos, construir o futuro, crescer com solidez, entender que o empreendimento cooperativo não é de um ou de outro, entregar o mais alto grau de excelência para todos os agentes. O modelo é incrível, e precisa antecipar-se à falibilidade humana – nós, seres tão pobres por vezes, mas grandemente ricos e prósperos, na maioria das ocasiões (como prefiro, esperançosamente, crer).
Vez ou outra, desde minha transição de carreira, sinto muita dificuldade ao explicar para colegas ou conhecidos, o que tenho feito da vida. Quando conto que constituímos uma cooperativa, a piada recorrente é questionar se agora trabalho com reciclagem. À priori, confesso, me incomodava, e saia catequizando deus e o diabo sobre a beleza de nossos princípios doutrinários. Atualmente, com humildade, apenas acolho e concordo – atuar em uma cooperativa de educação corporativa, no fundo, no fundo, é um exercício diário de reciclagem.
Talvez cooperativismo seja mesmo coisa de pobre. Coisa de gente que não tem a intenção de enriquecer à custa dos outros, coisa de quem prefere dividir democraticamente o fruto do empenho e da competência, gente pobre que enxerga o valor do esforço alheio e que fica feliz com a dignificação das relações de negócios. E que não tem problema nenhum, ainda assim, em enriquecer financeiramente, ganhar dinheiro, gerar resultados, impactar o desenvolvimento econômico, promovendo, ao mesmo tempo, a sustentabilidade do empreendimento cooperativo. Aliás, isso de buscar ter interesse pela comunidade, também tem muita cara de coisa de pobre. Ainda bem que, como está escrito, são os pobres os bem-aventurados. Que assim sejamos, pobres cooperativistas!
Por Maíra Santiago, diretora-presidente da Cooperativa Coletiva