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Como escapar da dureza do mercado?

Publicado em 31/05/2022

A lógica simplória de ter apenas duas alternativas a escolher – ser explorador ou explorado – nunca me fez bem. Mesmo em organizações ditas vanguardistas, no fim das contas, em geral, há quem lucre pela lógica mais evidente do capitalismo: a exploração mera e simples da mão de obra servil. Quando me vi em condições de não mais ter um chefe, parecia um caminho óbvio tornar-me a chefe. E isso me corroía por dentro.

Ao observar o mundo, a feliz constatação de que há modelos alternativos e bem-sucedidos. Com simplicidade, não existe a necessidade de reinventar a roda. Basta olhar ao redor e seremos capazes de enxergar modelos prósperos de promoção social e inclusão econômica. Claro que, para isso, há de se renunciar a certas benesses egóicas. Desafio que não é nada fácil.

Analogamente, a circunstância atual do mercado se assemelha àqueles jogos experienciais chamados “escape games”. Estamos todos presos em uma sala, buscando desvendar enigmas e, alguns de nós, visam a desejada liberdade. Outros tantos conformam-se às condições estabelecidas e subsistem no espaço restrito e claustrofóbico, crendo que nem há realidade para além das portas trancadas. Aí vem a precarização do trabalho, a perda de direitos, o subemprego e outros terríveis que tais. 

“De onde vem a indiferença, temperada a ferro e fogo? Quem abre os portões da fábrica? O céu já foi azul, mas agora é cinza. E o que era verde aqui, já não existe mais.”

Minha referência desgastada, Renato Russo e sua Legião Urbana, segue a mesma (li um dia desses que nossas preferências musicais se estacionam em um momento da vida – o meu foi em torno dos 16 anos). Tantas poesias que só se transmutam em realidade cada vez mais explícita aos meus olhos, muito mais cansados e inaptos do que 20 anos atrás. Mas quero crer que, na mesma proporção que os olhos físicos e biológicos se desgastaram, os olhares da subjetividade tenham se aprimorado em qualidade e atenção.

Busco enxergar que há maneiras de viver – para além da sobrevivência – além das portas trancadas. Porém, é bem verdade que, assim como nas salas temáticas dos Escape Games, moda surgida há bons 10 anos, porém ainda pouco conhecida, é preciso coragem e disposição para compreender os enigmas estabelecidos. E, preferencialmente, buscar competências complementares capazes de desvendá-los. Em boa companhia podemos retroalimentar a esperança de que é possível encontrar a chave certa.

Recentemente recebemos o enorme presente de conhecer a primeira das cooperativas da América Latina. Obra do nosso patrono nacional do cooperativismo – o padre suíço Theodor Amstad, a Sicredi Pioneira do Rio Grande do Sul, sediada em Nova Petrópolis, é o berço do cooperativismo. O convite honroso de participar da integração dos novos colaboradores foi o prenúncio de um novo ano que, esperançosamente, cremos ser realmente novo (depois de um 2019 de grandes batalhas, que me parece, foram constantes para boa parte das pessoas de meu círculo – coincidência ou provação coletiva, ainda não sei dizer ao certo).

Conhecer a história do Padre, saber de seu bom humor, descobrir detalhes das dificuldades enfrentadas, sentir a relevância do legado construído, as várias crises enfrentadas, chamar pelo nome sua mula e companheira fiel – a Diana, e testemunhar a reverência de seus sucessores à história herdada. Dignificar o passado é uma forma alta, nobre e lúcida, parafraseando Pessoa, de inspirar um futuro ainda mais abundante e contributivo.

Theodor Amstad conhecia todos os segredos e foi mestre na arte de congregar gente para escapar de uma realidade dura e cruel. O que só foi possível diante de uma necessidade relevante e significativa para aquelas pessoas. Solon Stahl, diretor executivo da Sicredi Pioneira RS que, pessoalmente, narra essa e tantas outras histórias aos recém-chegados, nos ensinou que o que faz uma cooperativa nascer e perenizar-se é a necessidade, antes de qualquer filosofia utópica. Necessidade, comunidade e relacionamento – nessa ordem! – são fatores imprescindíveis que fazem uma cooperativa dar certo.

Mergulhamos para compreender também, a distinção entre o ato de cooperar – expresso pelo ser humano desde o tempo das cavernas, quando diante do desafio de caçar um mamute, por exemplo; o cooperativismo – doutrina pautada na promoção equânime de aspectos econômicos e sociais; e a cooperativa – organização jurídica pautada nos sete princípios, vigentes desde 1844, a partir dos probos pioneiros de Rochdale, na Inglaterra.

Saber que o padre Amstad (que se lê esse “s” com som de um “x” bem sonoro) foi vanguardista e visionário, fica claro quando nos deparamos com sua grande obra. Uniu católicos e luteranos ao redor de necessidades comuns, imigrantes atraídos pela promessa de terras, ferramentas e sementes – cuja efetivação se deu por parte dos anfitriões apenas no primeiro item. Quem veio desbravar o solo brasileiro e trouxe algum dinheiro consigo não encontrou utilidade nos rincões gaúchos daqueles tempos. Daí, a ideia simples e revolucionária – fazer circular o dinheiro para promover a prosperidade regional. Deu, e segue dando, muito certo a fórmula inspirada nos preceitos de Reiffeisen.

Municípios que com cooperativas atuantes possuem um IDH maior do que os demais, aqui mesmo no Brasil. Segundo dados do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), municípios servidos pelo cooperativismo tem um índice de desenvolvimento humano médio de 0,701 – a média de municípios não servidos é de 0,666 (dá até medo o número, pra quem possa ter algum tipo de superstição). Dá pra “escapar”, promover a sociedade e ser bem feliz fora das fronteiras dos cadeados.

Difícil entender quem se beneficia da não divulgação deste modelo tão fantástico. Ou, vai ver, é bem fácil, e o olhar da subjetividade, nessa hora, se embaça por não querer compreender os interesses de quem faz a vez de explorador. Buscando um pouco de literatura da área, nos anos 60 os autores não eram nada amenos e denunciavam os “parasitas” do sistema. Quem ganha dinheiro a partir da exploração dos pobres, não terá razões para promover justiça econômica e social. Theodoro Henrique Maurer Júnior, em seu livro “O cooperativismo, uma economia humana”, de 1966, menciona a visão do cooperativismo vinculado à vivência cristã, como “o mandamento do amor em ação”.

“Nosso dia vai chegar, teremos nossa vez, não é pedir demais, quero justiça. Quero trabalhar em paz, não é muito o que lhe peço. Eu quero trabalho honesto, em vez de escravidão. Deve haver algum lugar onde o mais forte não consegue escravizar quem não tem chance.” Renato, na mesma canção, Fábrica, segue refletindo sobre as possibilidades de descobrir as senhas dos cadeados.

Num Escape Game, dizem, apenas 15% dos jogadores conseguem desvendar os enigmas e escapar da sala no tempo estabelecido de 60 minutos. Aqueles que estão associados a cooperativas alcançam um percentual de 14% da população mundial, ou uma em cada sete pessoas.

A Sicredi Pioneira RS, pioneira que é, para muito além do nome, fecha com chave de ouro (e o perdão do trocadilho) a experiência das boas-vindas aos colaboradores com um escape game.

O mistério da carta de Amstad (lembre-se de ler o “s” com som de “x”!) é um escape room construído especialmente para a cooperativa. Não se sabe de nenhuma outra iniciativa organizacional de realizar um jogo como esse, personalizado e repleto de aprendizados, como parte do processo de integração. A experiência é inenarrável (literal e metaforicamente, para manter o segredo!). Posso apenas declarar que nunca vivi nada parecido, nesses mais de 20 anos de andanças em empresas e cooperativas por aí. O que posso revelar apenas é que o nosso grupo, sinérgico e colaborativo, infelizmente não desvendou todos os enigmas. Quem sabe em uma outra oportunidade consigamos atuar com ainda mais colaboração e perspicácia.

Porém, a alegria maior é constatar que, embora sem sucesso na missão gamificada, na vida real a gente segue procurando pistas, mantendo a escuta radical, buscando o melhor estado de presença e a vivência dos princípios cooperativistas, para não nos permitirmos seguir encarcerados em realidades que nos desagradam. Sem exploradores ou explorados. Com intercooperação. Dá pra ser diferente! Isso, constatado, comprovado, atestado e averiguado, há mais de 117 anos. Fomentemos esse movimento. Há vida, próspera e abundante, para além das fronteiras dos cadeados. Escapemos, juntos.

 

Por Maíra Santigo, diretora-presidente da Cooperativa Coletiva